sexta-feira, 8 de outubro de 2010

CHIBÉ

Faltando apenas dois dias para o meu pai completar 71 anos resolvi lembrar de uma comida da minha infância que ele sempre comia nas manhãs. O Chibé.

Meu pai é descendente de índios e nascido em Belém do Pará, mas deixou sua terra há muito tempo sem deixar suas raízes.

Às vezes me olho e fico pensando se sou filho do padeiro, será ??? minha mãe jura pela sogra dela mortinha que sou filho dele, na dúvida, fico com a máxima: Pai é  aquele quem cria, por isso tenho uma grande admiração pelo meu pai.
Minha mãe é danada mesmo... o pernanbucana retada...

Vocês acreditam que meu pai logo que acordava adorava comer carne seca com farofa? ou até mesmo pirarucu? pois é, esta era a dieta do meu pai.

Hoje ele está mais light, se bobear só anda tomando mingauzinho que a minha mãe prepara para ele. Mas este homem já foi danado e adorava comer comida no lugar do café da manhã.



Aí o pessoal não entende o porque gosto de comer um pão com ovo bem cedinho, ou até mesmo um sanduiche de carne assada... hummmmm, já estou com água na boca.... adoro ir pro nordeste, pois ainda se prática este costume de comer bem ao  levantar da cama para tomar café da manhã.


O mais engraçado disto tudo era o meu pai pedir água gelada para misturar na farofa depois de comer toda a carne seca.
- como assim??? farinha e água gelada??? 

Pois bem, pasmem, este é um costume da região norte e é conhecido com o nome de CHIBÉ
- Esquisito né ??? Esquisito para nós aqui do sul, pois eu experimentei e digo que adogooo!!!

Para alguns lugares é conhecido como Jacuba, gonguinha, sebereba, tiquara, mas para mim é apenas Chibé.  




Conta uma lenda - chamada da primeira água - que Jacy (Lua) e Iassytatassú (Estrela D'Alva), combinaram um dia visitar Ibiapité (Centro da Terra).



Numa madrugada deixaram Ibacapuranga (Céu Bonito) e desceram para a terra. Descansaram no enorme disco da Iupê-jaçanã (Vitória-Régia) e se puseram a caminho para o centro da terra. Quando as duas se preparavam para descer o Ibibira (abismo), Caninana Tyba mordeu a alva face de Jacy que, sentindo a dor, derramou copiosas lágrimas amargas sobre uma extensa plantação de mandioca.


Depois disso, a face de Jacy nunca mais foi a mesma pois as mordidas da caninana, marcaram-na para sempre. Das lágrimas de Jacy surgiu o tycupy (tucupi). O tucupi é ácido cianidrico.


Todavia, as nossas avoengas descobriram que poderiam vencer esse veneno deixando-o exposto ao sol por três ou quatro dias ou, então, depois de "descansado" (tempo em que a tapioca sedimenta-se no fundo do vasilhame) é fervido, restando o tucupi pronto para o consumo humano.


Dessa massa (a tapioca) e da pimenta murupi surgiu a primeira iguaria exótica, nascida da sapiência das nossas avós amerabas.Os autóctones desconheciam o sal. E o arubé, apesar de ardente, era o que dava um gosto às comidas ensossas, além do que a sua causticidade as tornava mais saborosas. De exotismo em exotismo, surgiu a Tiquara, que chegou até nós como o nome de Chibé.


A Tiquara, ou Chibé, nada mais é que a farinha de mandioca, com a água fresca dos igarapés, bebida em uma cuia pitinga. Houve na história do Pará um instante onde o humílimo chibé foi reconhecido como alimento.


Ia acesa a Revolução Paraense, infamantemente conhecida por Cabanagem. As tropas legais reclamavam por alimentos.
O marechal Manuel Jorge, irado com os protestos, perguntou aos reclamantes:
- E os sediciosos o que é que comem?
Os perguntados responderam:
- Chibé!...
- Então, comam-no também, respondeu o marechal mal humorado.





A grande Chefe Mara Salles proprietária do Restaurante Tordesilhas fez uma matéria super interessante a respeito do Chibé e fez uma degustação com o pessoal do ramo de gastronomia. O mais engraçado disto tudo é que ninguém em sã consciência pediria água e farinha, esta comida de subsistência indígena, num restaurante.

Mas Mara deu uma incrementada incrível, sem se perder nos sabores da terra. E prometeu colocar no menu do Tordesilhas sem demora. Com farinha ovinha* ácida e crocante mergulhada na água gelada, com temperos como pimenta-de-cheiro e coentro e servida como se vê, com uma mini cuia no lugar de colher.

*Ova e ovinha. Depende do tamanho das bolinhas. A mandioca amarela é deixada na água até amolecer, apodrecer, virar puba. É com esta mandioca espremida e passada em peneira que se faz a farinha d´água, que deve ser seca no tacho até os grãos ficarem bem secos. Em Manaus encontrei-as no Mercado assim, redondinhas, conhecidas como farinha de Uarini (o município onde são feitas – a maior parte delas, pelo que sei). Recebem apelido de ova ou ovinha pois depois de hidratadas se parecem mesmo com ovas de peixe.



Tradicionalmente o chibé vai passando na roda em recipiente grande com uma cuia coletiva boiando e cada um que está ao redor pega seu tanto, ou comido isoladamente, basta tirar com a cuia um pouco de água do rio e jogar aí um punhado de farinha.


A noite em que ela serviu o chibé estava quente e as pedrinhas de gelo no caldinho ácido e bem temperado transfornaram o simples chibé numa entrada refrescante e refinada, a cuia ainda veio apoiada numa cumbuquinha preta de cerâmica com mais gelo. Alguém resiste? Como disse Nina Horta, é o nosso gaspacho.

E a Mara deu a receita. Lá vai:


Chibé da Mara Salles
Ingredientes
1 pimenta fidalga ou murupi fresca
1 litro de água muito gelada
Sal (pouco porque a acidez da farinha e do limão potencializam o sal)
1 dente de alho micropicado
1 cebola média micropicada
2 colheres (sopa) de coentro micropicado (sem os talos)
2 colheres (sopa) de salsinha micropicada (sem os talos)
4 folhas de chicória-do-pará micropicada
Suco de 1 limão-cravo ou siciliano
10 colheres (sobremesa) de farinha d’agua (a ovinha é a melhor que já usei)


Modo de Preparo
Judie a pimenta fresca no fundo do recipiente onde será feito o chibé, numa baciazinha ou tigela adicione água gelada e também, se quiser, pedrinhas de gelo, adicone sal e todos os demais ingredientes, menos a farinha. Misture bem. Distribua pelas cuias a farinha d’água, 1 colher de sobremesa em cada uma. Distribua também entre elas o caldo gelado temperado. Deixe descansar por 10 minutos - não mais, para a farinha inchar sem perder totalmente a textura. Sirva imediatamente.


Rendimento: 10 cuias médias

 
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